Voar: o espaço-tempo do não-controle

Mayra Fonseca
3 min readNov 5, 2019

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Neste ano, celebrei muito quando recebi o convite da FutureBrand para ajudar a desenhar a metodologia da pesquisa que acompanhou passageiros brasileiros em diversos vôos pelas Américas: eu estava diante de um precioso briefing que me possibilitava aplicar o que há de mais humano na etnografia!

Durante o trabalho, foram horas de campo em rotas no país, entre destinos da América do Sul e aos Estados Unidos. Diferentes pessoas confiaram sua companhia à competente equipe de pesquisadoras. Além das etnografias dos vôos, a pesquisa incluiu entrevistas com responsáveis pelos pontos de apoio da empresa que contratou o projeto.

Eu, que tanto me movimento pelos mapas, senti a necessidade de revisitar minhas histórias e emoções enquanto observava o comportamento de outros passageiros. Meu primeiro vôo: Belo Horizonte-Salvador, aos 18 anos. Quando quase fui presa no aeroporto de Istambul. A primeira vez que sobrevoei a Amazônia. O dia em que comecei a ter episódios de ansiedade e pânico dentro de aviões. Tantos abraços nos salões de embarque dos aeroportos…

São muitos os desafios da pesquisadora em um projeto assim. Diante da pergunta: “Mayra, devemos estar preparadas para o quê neste campo?” A única resposta possível foi: “devemos estar preparadas para não estarmos preparadas”. O imprevisto realmente nos acompanhou. Em uma situação, fomos surpreendidas com a revelação de que um importante passageiro dividia conosco a sua primeira viagem internacional: o bebê de uma família, ainda na barriga de sua mãe. Em outro momento, as pesquisadoras foram convocadas pela polícia federal no aeroporto e, por isso, perderam um ponto de observação da jornada dos passageiros.

Já na primeira semana de entrevistas em profundidade, uma profissional responsável pelo check-in no maior aeroporto do país revelou-se uma exímia observadora cotidiana do voar!

Ela me contou que esse mesmo sentimento que eu convidada os pesquisadores a abraçar, o não-controle, é uma importante fonte de frustrações de passageiros no Brasil.

Veja bem, é preciso embarcar em um enorme objeto que nos faz atravessar nuvens e nos entrega a outra cidade com diferente temperatura e sotaque… tudo isso em um tempo muito menor do que o deslocamento pelo chão!

E, ainda que seja uma experiência quase mágica, voar é, ao mesmo tempo, uma engenharia precisa. Algo que exige dos passageiros o cumprimento de uma sequência de regras incompatível com o cotidiano contemporâneo de aplicativos que nos vendem ser tantas identidades e desempenhar muitas tarefas ao mesmo tempo.

Ao se entregar para o voar, não mais controlamos o tamanho e peso dos objetos que carregamos. Os sons, a luz, a temperatura, quem está ao lado, o alimento que comemos. Até é preciso desapegar-se um pouco desse totem que parece nos informar quando somos lembrados, amados, admirados, seguidos: sim, o celular.

E, mesmo diante de tanta confiança depositada, nada nos garante que pousaremos no aeroporto que gostaríamos, que decolagem e desembarque serão pontuais, que o vôo não será cancelado por condições climáticas.

Nos dias atuais, quais outras experiências humanas são semelhantes a seguir dezenas de procedimentos para entrar em um cilindro branco com desconhecidos e sem ter controle da experiência? Uma performance artística em um museu, um procedimento médico em um hospital, uma sessão de meditação guiada em um templo?

O que os nossos corpos sentem e quais emoções são disparadas em espaços-tempos assim?

Ao final do trabalho, convidamos a indústria a voltar-se para a formulação de perguntas tão sensíveis quanto essa. E a continuar pesquisando para responder a essas perguntas considerando mais a perspectiva de quem voa e não somente as cartilhas da engenharia do voar.

(Para conhecer mais sobre meu trabalho, visite o mayrafonseca.com.br )

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Mayra Fonseca

Consultoria/Pesquisa. Doutoranda Antropologia. Comportamento, etnografia. Culturas BR/LATAM, sustentabilidade, negócio social, ODS. Palestra, oficina, mentoria.