Um outro espaço-tempo metodológico: pesquisa em ambiente digital E durante a pandemia

Mayra Fonseca
7 min readMar 31, 2021

--

Há um ano atrás eu estava dirigindo um importante projeto de pesquisa etnográfica que precisou rapidamente ser adaptado para o contexto digital.

(A frase não é só minha, mas de muitas pessoas pesquisadoras no mundo.)

A metodologia inicial da pesquisa previa a vivência das pesquisadoras na casa das pessoas pesquisadas, o observar cenários para considerar contextos: os recursos, a morada, a rua, o entorno, o bairro. Isso com o objetivo de coletar mais textura de informação sobre o modo e escolhas de vida das pessoas e de colaborar para a construção de um olhar mais humano e real, para além dos algoritmos e números que são muitas vezes as únicas informações que direcionam a tomada de decisões do cliente. O projeto era muito estratégico: envolvia prazo, investimento e equipe sensíveis (incluindo a participação de C-level, consultores brasileiros e estrangeiros, times internos). O trabalho começou em uma terça-feira com agenda repleta de apresentações e workshop, no outro dia foi iniciado o trabalho remoto no país.

“Você faz pesquisas em ambientes digitais? Sim, desde 2007.”

Esse foi o diálogo mais frequente nas reuniões, mensagens e e-mails nos próximos dias. Eu não estava tão preocupada com o novo espaço/canal da pesquisa, com a sua transformação digital que implicava em uma revisão metodológica. Meu maior ponto de atenção era um novo e desafiador tempo de pesquisa: o tempo da pandemia da Covid-19 no Brasil.

Sobre pesquisar em ambiente digital, compartilho alguns aprendizados de uma trajetória que reconhece os limites e os benefícios desse espaço de pesquisa:

  1. Existem projetos de pesquisa que nascem digitais, existem aqueles que são adaptados para esse ambiente. Por isso, é sempre importante voltar para o briefing para compreender quais serão os melhores estímulos e técnicas também no digital. Não basta tentar replicar uma jornada de pesquisa presencial para o digital, nesse momento é importante ter alguém na equipe com experiência e sensibilidade para o desenho metodológico voltando para o problema de pesquisa, para o universo e amostra, para os objetivos, para o cronograma. E aqui vale lembrar que somente replicar um framework/template, seja de moderação ou de análise, não corresponde a uma revisão de metodologia.
  2. Assim como acontece em presenciais, as pesquisas em ambientes digitais nos lembram a importância de planejar também a experiência da pesquisa: Qual é a jornada-convite para as pessoas pesquisadas? Qual é a narrativa, tom, palavras e símbolos que serão utilizados? Quais serão os rituais de pesquisa?
  3. Dedicar tempo e recursos para aprender e incorporar o contexto das pessoas pesquisadas antes do campo. Esse é, de onde vejo, um dos principais desafios do trabalho de pesquisa no Brasil: no 2º país mais desigual do mundo em termos de concentração de renda (dados ONU) e 5º com menos noção da própria realidade (pesquisa IPSOS), é muito frequente que pesquisadores e observadores tenham um repertório muito distante das pessoas pesquisadas e, portanto, bastante limitação para compreender os achados do campo. Nessa medida, o deslocamento em campo presencial funciona como uma travessia inicial entre mundos que, endereço a endereço, movimenta também quem pesquisa. Daí que, no espaço digital de pesquisa, recrutamento completo e minucioso e o estudo das informações da sociedade e da pessoa pesquisada são etapas fundamentais.
  4. Ainda sobre a preparação, pesquisadores devem preservar um tempo e cuidar do seu corpo e cenário antes de cada interação digital. Óbvio, mas pouco implementado em um momento em que todos somos estimulados a abrir e fechar salas virtuais sem intervalos. Aqui vale destacar a necessidade de um olhar tão atento para outros corpos e cenários que seja capaz de atravessar muitas telas.
  5. Entender a interface, a tela, como estímulo e informação de pesquisa também é importante nesses casos. Se uma câmera fotográfica é um objeto que interfere e pode contribuir para dinâmica de um campo de pesquisa, vale considerar a presença de camadas de telas e possibilidades de performance e distração nas interações digitais.
  6. Etnografia não é entretenimento. Simples assim. Se um grupo de observadores acompanha um campo digital com um corpo mais ocupado em expressar suas emoções e julgamentos do que em aprender (com) outros mundos, o pacto ético da pesquisa digital precisa ser revisto.
  7. Em algumas pesquisas com interações diversas e contato de médio e longo prazo, a pessoa pesquisada pode tornar-se também co-pesquisadora (talvez autoetnógrafa) quando é a responsável por inventariar objetos, fotografar cenários, gravar depoimentos de seu círculo social. Aqui, é prerrogativa uma equipe de pesquisadores com experiência a ponto de conseguir transmitir as tarefas de modo consistente para a metodologia e prazeroso para a pessoa que participa da pesquisa com o papel de olhar e de ser olhada.

Todos esses são pontos para conversa e discussão sobre o espaço digital de pesquisa, bem antes de 2020. O que nós, pessoas pesquisadoras, estamos especialmente aprendendo é a fazer pesquisa nesse tempo outro, o tempo da pandemia da Covid-19.

E o que é uma pandemia senão um novo marco temporal?

Estamos vivendo uma situação global que efetivamente projetou todas as pessoas a rápidas decisões e adaptações. No Brasil, o cotidiano e as conversas mais parecem um daqueles cenários extremos que projetamos em campo de pesquisa para levantar critérios de decisão e comportamento. O amanhã excepcional é o agora, um tempo metodológico único enquanto individual e coletivamente:

  • atribuímos novos significados ao passado;
  • no presente, re-escolhemos o que é prioridade (o que cozinhar/comer, a quem dar atenção, como economizar, em quem confiar, em quê acreditar, o que fazer e o que deixar de fazer…) e re-descobrimos emoções nos seus picos (medo, solidão, ansiedade, angústia, fragilidade, irritação, indignação, negação, isolamento…);
  • projetamos futuros — somos hiper estimuladas a fazê-lo — temerários ou esperançosos.

Desde aquele outro março, em 2020, estamos aprendendo um pouco sobre fazer pesquisas nesse tempo metodológico único:

  1. Mais que fazer um convite para uma interação digital, uma pesquisa deve considerar a inclusão respeitosa de pessoas que estão diante de uma obrigatória aceleração digital e que, em alguns casos, estão às margens desse acesso.
  2. É fundamental investir em tempo e abertura real para a escuta. Diante de uma tela aberta para perguntas e respostas, as pessoas brasileiras estão falando muito e se expressando de modo muito intenso. O amparo, ainda que em forma de atenção digital, é uma importante moeda de troca para pessoas pesquisadas. Não é o pagamento para a participação em um projeto, é um presente humano com efeito positivo no trabalho: ouvir o que o outro precisa dizer é o que abre as portas para a conexão e a confiança real em tempos tão extremos.
  3. Pesquisadoras precisam cuidar de sua saúde para que exista esse espaço de escuta. Equipe de trabalho e contratante precisam zelar pela saúde das pessoas que pesquisam. Também evidente e raro.
  4. A metodologia, digital, extrapola a função de meio de implementação e transbordou a objeto de estudo durante a pandemia: estamos também observando como as pessoas interagem com o ambiente para solucionar seus desafios cotidianos, como estão vencendo as barreiras da pandemia por meio de conexões digitais.
  5. Com horizontes de futuro complexos/doídos de entender e ver, grande parte das pessoas pesquisadas no Brasil se protegem ainda mais no pensar-falar sobre o dia-a-dia. Propor exercícios de escolhas significa tocar em fortes sentimentos humanos neste momento.
  6. Ainda que individuais na composição da tela, boa parte das interações digitais durante a pandemia contam com co-participantes que interferem no campo de pesquisa: crianças, idosos, parceiros. Os roteiros e formulários devem prever tempo e espaço para o coletivo e a moderação deve buscar entender até que ponto a colheita de respostas acontece influenciada por essas outras presenças.
  7. O durante os campos de pesquisa também está marcado pela contagem do tempo, coletivo e individual, própria da pandemia: a cada semana, em cada praça de estudo, a curva de contaminação e óbitos e isolamento físico e vacinação afetam a rotina e as emoções das pessoas pesquisadas. Em campo e análise, é preciso considerar essa cronologia.

Tenho bastante orgulho da costura metodológica daquele projeto de um ano atrás e que durou seis meses. A equipe aplicou tudo o que sabia sobre pesquisa digital e aprendemos a fazer pesquisa durante a pandemia.

Esses dois assuntos, pesquisa digital e pesquisa durante a pandemia, são alguns dos mais presentes por aqui em mentorias e a vontade é de dialogar ainda mais com outras pessoas pesquisadoras sobre os aprendizados desse último ano de trabalho: enquanto nos cuidamos e aprendemos a trabalhar nesse novo tempo, será que ainda conseguimos abrir espaço para trocar descobertas técnicas e metodológicas?

(Para quem gostaria de receber mais conteúdos sobre esses e outros aprendizados, preencha o formulário para ser comunicado quando lançarmos cursos com essa temática.)

--

--

Mayra Fonseca

Consultoria/Pesquisa. Doutoranda Antropologia. Comportamento, etnografia. Culturas BR/LATAM, sustentabilidade, negócio social, ODS. Palestra, oficina, mentoria.